sexta-feira, 1 de junho de 2018

Da despenalização da eutanásia...


Nota Prévia:

Sei que o texto que apresento hoje não será bem visto por alguns. Mas é a minha profunda convicção enquanto ser humano. E eu não abdico das minhas convicções quando as mesmas resultam da expressão de um direito inalienável: a minha liberdade.

Muitos foram os "iluminados" e os denominados "líderes de opinião" que já falaram sobre as propostas que estavam em discussão na Assembleia da República a propósito da despenalização da eutanásia.

Para quem não teve oportunidade de ler as propostas, (e eu atrevo-me a incluir neste grupo a maioria das pessoas referidas no parágrafo anterior), o que estava em causa era, de forma resumida, não punir os profissionais de saúde que pratiquem ou ajudem uma pessoa, maior, que por sua própria decisão decide antecipar a sua morte quando em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal (na versão da proposta do PS com a qual, em linhas gerais, mais me identifico).

Posto isto,

No fundo, o que está em causa é o de saber se alguém, consciente, padecendo de um sofrimento intenso devido a uma lesão definitiva ou incurável e fatal (cumulativo, como se vê), tem a liberdade de escolher se quer antecipar a sua morte e de solicitar a um profissional de saúde que antecipe a sua morte.

A Assembleia da República reprovou a liberdade que cabe exclusivamente a cada um de nós. 

Não me venham dizer que não houve discussão suficiente. Não me venham dizer que a despenalização da eutanásia não constava de todos os programas eleitorais (apenas constava do programa eleitoral do PAN).  Não me venham dizer que neste caso o melhor era existir um referendo.

Não me venham com essas hipocrisias. A eutanásia é, e será sempre, uma decisão pessoal. Intrínseca à liberdade e dignidade de cada ser humano.

Aqueles Senhores Deputados, que no final se levantaram para bater palmas, insultaram-me. Eu sou livre de escolher se quero sofrer dores horríveis até o coração deixar de bater por força dos medicamentos que me vão dando para minimizar a dor (mais uma verdadeira hipocrisia pois a eutanásia é praticada todos os dias de forma encapotada e, quantas vezes sem o consentimento do doente), ou se quero antecipar a hora em que o meu coração deve parar.

Aqueles Senhores Deputados, que no final se levantaram para bater palmas, insultaram o meu pai. Um homem que com apenas 42 anos lhe diagnosticaram um tumor cerebral. Um homem que adorava viver na verdadeira acepção do termo. Um homem que tinha três filhas, uma das quais com oito anos, que tiveram que assistir à transformação de um pai que adoravam num ser vegetal (palavra chocante mas verdadeira, porque na última semana não era o meu pai que estava deitado naquela cama). Um ser que deixou de andar, de ouvir, de ver, de falar, de comer e que quarenta e oito horas antes da sua morte tinha a sua mulher, ou eu própria a "aspirar" pedaços de órgãos liquefeitos para não sufocar.

Um homem que antes de perder a capacidade de falar me agarrou nas mãos e me pediu a chorar para o ajudar a partir. Que merecia partir. Que não merecia terminar a vida como um ser vegetal.

O meu pai merecia ter uma morte digna. Tal como qualquer ser humano.

Aqueles Senhores Deputados, que no final se levantaram para bater palmas, nunca devem ter tido a experiência de ver alguém que eles amavam a transformar-se num ser vegetal (não posso crer pois não teriam coragem para votar contra).

Aqueles Senhores Deputados, que no final se levantaram para bater palmas, têm todo o direito de optar por sofrer dores inimagináveis, por uma lesão definitiva ou doença incurável e fatal e dar o último suspiro quando o coração entender.

Mas aqueles Senhores Deputados, que no final se levantaram para bater palmas, não têm o direito de determinar quando é que eu quero que o meu coração deixe de bater quando estiver a sofrer dores inimagináveis, por uma lesão definitiva ou doença incurável e fatal.

As palmas não assinalaram uma vitória da vida. As palmas assinalaram, apenas e tão só, a indignidade.

É a minha escolha, é a minha liberdade, é a minha dignidade enquanto ser humano. Direitos que a Constituição me confere e dos quais não abdico.


Nota: 
Lembrei-me agora que até os animais têm mais dignidade na morte que o ser humano, pois é impensável deixar um animal a agoniar e leva a injecção que finalmente lhe dará paz. Triste. 




6 comentários:

redonda disse...

É o que penso também

OQMDNT disse...

Como afirmei noutro lado, trata-se de uma questão de soberania individual.
Negar-me a soberania sobre mim é negar a minha liberdade.
Se me negam as liberdades individuais, como podem afirmar que se vive em democracia?

Não é uma questão (tal como o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a prostituição, o consumo de substancias consideradas estupefacientes, etc...) que deva ser definida por uma maioria, é uma questão completamente da consciência de cada um!
As leis devem servir para regular as interacções entre pessoas, e das pessoas com instituições! Tudo o resto cabe num quadro de soberania pessoal em que deve ser o próprio, em consciência, que deve decidir por si. Desde que as suas acções não prejudiquem terceiros, ninguém tem o direito de dizer seja o que for!

Qualquer um que ache que tem o direito de regular a vida de outro está efectivamente a retirar-lhe a liberdade.

:)

Kique disse...

Grande texto NI

A verdade é que a merd* da politica e a vontade dos velhos do restelo ainda vai prevalecendo neste país de corruptos.

A vontade do ser humano, em continuar com a sua vida em determinadas situações deve ser dele e não de terceiros.

Bjs

Portugalredecouvertes disse...


Ola Ni
fiquei muito emocionada com esse testemunho tão doloroso, de uma dor extrema
abraço
Angela

Francisco o Pensador disse...

Estava a tentar evitar falar sobre este tema no meu blog, mas este teu post foi tão comovente e deixou-me tão emocionado que vai ser-me muito difícil continuar a fazê-lo. Deixaste-me mais uma vez sem palavras e subscrevo cada palavra tua. Tratam a vida humana como se ela fosse propriedade de toda a gente menos de quem a tem. Chamam-nos de homens livres mas é acima de tudo neste tipo de coisas que a nossa liberdade pode ser testada e revelada. Estava a tentar evitar...mas talvez não consiga mais. Vou pensar. :(

Bjs Nina.

cantinho disse...

Faço minhas as suas palavras.
Só quem passa por elas,sabe.
E eu tenho pavor ao sofrimento de todos.
Beijinhos

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