quarta-feira, 10 de abril de 2019

Porque vale a pena dizer isto...



Por quem sabe dizer...


" Estávamos ainda no século XX, no longínquo ano de 1968, quando a vida me deu oportunidade de cumprir um dos meus sonhos: ser professora.

Dei comigo numa escola masculina, ali muito pertinho do rio Douro, na primeira freguesia de Penafiel, no lugar de Rio Mau.
Era tão longe, da minha rua do Bonfim, não podia vir para casa no final do dia, não tinha a minha gente, e eu era uma menina da cidade com algum mimo, muitas rosas na alma, e tinha apenas 18 anos.

Nada me fazia pensar que tanta esperança e tanta alegria me trariam tanta vida e tantas lágrimas.
Os meninos afinal eram homens com calos nas mãos, pés descalços e um pedaço de broa no bolso das calças remendadas.
As meninas eram mulheres de tranças feitas ao domingo de manhã antes da missa, de saias de cotim, braços cansados de dar colo aos irmãos mais novos, e de rodilha na cabeça para aguentar o peso dos alguidares de roupa para lavar no rio ou dos molhos de erva para alimentar o gado.

As mães eram mulheres sobretudo boas parideiras, gente que trabalhava de sol a sol e esperava a sorte de alguém levar uma das suas cachopas para a cidade, “servir” para casa de gente de posses.
Seria menos uma malga de caldo para encher e uns tostões que chegavam pelo correio, no final de cada mês.

Os homens eram mineiros no Pejão, traziam horas de sono por cumprir, serviam-se da mulher pela madrugada, mesmo que fosse no aido das vacas enquanto os filhos dormiam (quatro em cada enxerga), cultivavam as leiras que tinham ao redor da casa, ou perto do rio e nos dias de invernia, entre um jogo de sueca e duas malgas de vinho que na venda fiavam até receberem a féria, conseguiam dar ao seu dia mais que as 24 horas que realmente ele tinha. Filhos, eram coisas de mães e quando corriam pró torto era o cinto das calças do pai que “inducava” … e a mãe também “provava da isca” para não dizer amém com eles…

E os filhos faziam-se gente.
E era uma festa quando começavam a ler as letras gordas dum velho pedaço de jornal pendurado no prego da cagadeira da casa…o menino já lia.. ai que ele é tão fino… se deus quiser, vai ser um homem e ter uma profissão!
Ai como a escola e a professora eram coisas tão importantes!
A escola que ia até aos mais remotos lugares, ao encontro das crianças que afinal até nem tinham nascido crianças…eram apenas mais braços para trabalhar, mais futuro para os pais em fim de vida, mais gente para desbravar os socalcos do Douro, mais vozes para cantar em tempo de colheitas.
E os meninos ensinaram-me a ser gente, a lutar por eles, a amanhar a lampreia, a grelhar o sável nas pedras do rio aquecidas pelas brasas, a rir de pequenas coisas, a sonhar com um país diferente, a saber que ler e escrever e pensar não é coisa para ricos mas para todos, para todos.
E por lá vivi e cresci durante três anos e por lá fiz amigos e por lá semeei algumas flores que trazia na alma inquieta de jovem que julgava conseguir fazer um mundo menos desigual.
E foi o padre António Augusto Vasconcelos, de Rio Mau, Sebolido, Penafiel, que me foi casar ao mosteiro de Leça do Balio no ano de 1971 e aí me entregou um envelope com mil oitocentos e três escudos (o meu ordenado mensal) como prenda de casamento conseguida entre todos os meus alunos mais as colegas da escola mais as senhoras da Casa do
Outeiro. E foi na igreja de Sebolido que batizou o meu filho, no dia 1 de janeiro de 1973.

E é deste povo que tenho saudades. O povo que lutou sem armas, que voou sem asas, que escreveu páginas de Portugal sem saber as letras do seu próprio nome.
Hoje, o povo navega na internet, sabe a marca e os preços dos carros topo de gama, sabe os nomes de quem nos saqueia a vida e suga o sangue, mas é neles que vai votando enquanto continua á espera de um milagre de Fátima, duns trocos que os velhos guardaram, do dia das eleições para ir passear e comer fora, de saber se o jogador de futebol se zangou com a gaja que tinha comprado com os seus milhões, e é claro de ver um filmezito escaldante para aquecer a sua relação que estava há tempos no congelador.

As escolas fecharam-se, os professores foram quase todos trocados por gente que vende aulas aqui, ali e acolá, os papás são todos doutores da mula russa e sabem todas as técnicas de educação mas deseducam os seus génios, os pequenos /grandes ditadores que até são seus filhinhos e o país tornou-se um fabuloso manicómio onde os finórios são felizes e os burros comem palha e esperam pelo dia do abate.
Sabem que mais?!
Ainda vejo as letras enormes escritas no quadro preto da escola masculina, ao final da tarde de sábado, por moços de doze e treze anos com estes dois pedidos que me faziam: “Professora vá devagar que a estrada é ruim, e não se esqueça de trazer na segunda-feira, papel macio pró cu e roupa boa dos seus sobrinhos prá gente”.

Esta gente foi a gente com quem me fiz gente.
Hoje, não há gente… é tudo transgénico .
O povo adormeceu à sombra do muro da eira que construiu mas os senhores do mundo, estão acordadinhos e atentos, escarrapachados nos seus solários “badalhocamente” ricos e extraordinariamente felizes porque inventaram máquinas e reinventaram novos escravos.
Dizem que já estamos no século XXI...”
Do Mural da Profª. Lourdes dos Anjos

E as músicas, sim hoje são duas, só podiam ser estas. Dois hinos....



3 comentários:

Janita disse...

Olá, NI.

E é porque o sonho e a vida, é como uma bola colorida entre as mãos de uma criança é que nestes cinquenta anos, ela, a bola que é vida e sonho, não parou. Entre avanços e recuos, cá se foram alterando as vidas dos que bebiam o suor cavando a terra e dos iam ao mar buscar o peixe para puderem comprar na terra, o pão.

Esta história bem escrita e bem contada por quem sabe, é a história de uma vida que engloba outras vidas menos afortunadas, mas quantas e quantas outras histórias poderiam ser contadas. Das gentes do Alentejo, marginalizados e esquecidos do resto do país.
Também eles sofreram e não foi pouco. Felizmente, o acesso às letras , esse, não lhes foi sonegado e puderam sonhar mais alto. Ao abalar para a grande cidade em busca de meios de sobrevivência que já não conseguiam por lá, foi nas indústrias que os filhos cresceram e se fizeram homens e mulheres. Também o papel para limpar o cu era dispensado e substituído por outro papel qualquer, que o dinheiro era pouco para fazer frente às despesas e esses luxos eram dispensados

Gostei muito de te ler, mas não chorei. Imagina porquê.

Há uma pessoa da minha família, que infelizmente já partiu, que aos 19 anos também já era Professora. Nesse tempo bastava estudar até ao 9º ano e fazer mais 2 anos de Magistério.
Houve alguém que sonhou seguir o mesmo caminho, queria tanto ensinar os meninos a juntar as letras e aprenderem a ler, mas esse sonho, por mais que a bola colorida rolasse, recuava sempre de encontro à dura realidade: a força dos seus braços foi precisa para, numa fábrica de lanifícios, contribuir para pôr comida na mesa.
Como a luta continua e o sonho nunca morre, puderam os seus filhos realizar os seus sonhos e ir mais além.

Um beijinho grande e desculpa este desenrolar de palavras, é que dentro de uma história de vida, cabem muitas outras histórias, de outras vidas.
Aceita um grande, grande abraço.

noname disse...

Caramba, que realismo, sem pruridos preto no branco. Adorei lê-la.
Por vezes penso que, ainda assim, no tempo velho as crianças eram mais felizes e educadas, respeitadoras e com valores. Elas sabiam na carne o quanto a vida é dura e que nada caía do céu, faziam-se homens precocemente, mas retirando as excepções,(que sempre existem e não seriam poucas) faziam-se homens, tantas vezes rudes, mas de coração grande.

Boa tarde

cantinho disse...

Parabéns, Ni.
Um texto que me traz imensas recordações da infância, e a minha não foi nada da que aqui contou.
Hoje, o respeito que havia pelos pais, com algum medo, pelos familiares, pelos mais velhos, pelos governantes, era outro.
Hoje,há dinheiro de plástico que paga as contas, os carros, a beleza, a vida para ser publicada nas redes sociais, enfim, tudo é mais fácil, mas num ápice tudo se afunda.
Um abraço.

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